Marina Borba

Feb 26, 20224 min

A Dependência Científica e Política da Agência Nacional de ATS no Brasil

Diante da necessidade de serem estabelecidas medidas para limitar os gastos em saúde, a Avaliação de Tecnologias em Saúde (ATS) foi criada no início da década de 1970, quando o surgimento do scanner de tomografia computadorizada (TC), ao altíssimo custo por unidade de mais de US$ 300.000, tornou-se uma questão de saúde pública (World Health Organization, 2011).

Desde então, o paradigma da ATS expandiu-se substancialmente, visando sistematizar as evidências científicas sobre determinada tecnologia de saúde, incluindo a análise das implicações sociais, éticas e econômicas de seu uso nacional (Jonsson; Banta, 1999), para nortear positivamente o processo de tomada da decisão política de incorporação (Yuba, Novaes; de Soárez, 2018). 

Assim, o processo de ATS é regulado em cada país e a tomada da decisão política de incorporação também deve ser feita nacionalmente, já que dependerá do contexto específico em que os aspectos sociais, éticos, organizacionais, profissionais e econômicos avaliados estarão inseridos (World Health Organization, 2011).

No Brasil, até 2006, o processo de incorporação de tecnologias pelo sistema público de saúde, denominado de Sistema Único de Saúde (SUS), não estava normatizado no país. Essa situação mudou com a instituição da Comissão para Incorporação de Tecnologias (Citec) que era subordinada ao Ministério da Saúde e cuja missão era conduzir o processo de incorporação de tecnologias considerando aspectos sociais e de gestão do SUS. Embora tal iniciativa tenha sido importante para o avanço institucional do tema, não impediu o crescimento das demandas judiciais pautadas no direito constitucional à saúde que garante o acesso a medicamentos e procedimentos médicos – fenômeno descrito como "judicialização da saúde" (Aith, Bujdoso, Nascimento; Dallari, 2014).

Diante disso, em 2009, o Supremo Tribunal Federal (STF) realizou uma audiência pública,motivado pelas reiteradas decisões judiciais que determinavam o fornecimento público de medicamentos, para discutir a adoção de medidas imediatas para a incorporação de tecnologias no âmbito do SUS (Aith, Bujdoso, Nascimento ; Dallari, 2014).

Como resultado dessa iniciativa do Poder Judiciário, foi editada a Lei 12.401 em 2011 que criou a agência de ATS no Brazil, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec, National Committee for Health Technology Incorporation), em substituição à Citec, com o objetivo de assessorar o Ministério da Saúde (MS) sobre as políticas de incorporação de tecnologias (Yuba, Novaes ; de Soárez, 2018).

Na perspectiva dos estudos desenvolvidos pelo projeto SPIN, estamos discutindo se tal iniciativa poderia ser considerada um caso de inovação social farmacêutica, ainda que seja permeada de importantes obstáculos narrados a seguir.

Inspirados em agências internacionais de ATS, os relatórios da CONITEC devem ser necessariamente baseados em dados comprovadamente científicos e em dados econômicos que subsidiarão as avaliações econômicas e o impacto orçamentário. Assim, em uma perspectiva ao menos teórica, pode-se atestar a autonomia científica da agência para assessorar a tomada de decisão política de incorporação do Ministério da Saúde.

Apesar disso, em outubro de 2021, durante uma reunião colegiada, a Conitec discutiu a recomendação ou não do uso do chamado “Kit Covid”, composto por medicamentos como a hidroxicloroquina, em pacientes com Covid-19. Surpreendentemente, na votação, houve empate técnico em razão da posição de integrantes do Ministério da Saúde que contrariaram parecer do próprio Ministério, que demonstrava a ineficácia daqueles medicamentos contra a doença (Cordovil, 2021).

O que esperar, então, de uma agência, cujos relatórios de ATS sofrem interferência política clara do próprio Ministério da Saúde? Segundo Cordovil-Oliveira (2021), isso suscitou na opinião pública a suspeita de que o processo decisório da Conitec padece de falta de independência, transparência e legitimidade.

Diante disso, as perspectivas para os usuários do sistema de saúde brasileiro, e em especial para os pacientes com doenças raras, são das melhores (Cordovil-Oliveira, 2021). Além do modelo atualmente existente de ATS ser voltado para doenças prevalentes (Souza, Krug, Picon; Schwartz, 2010), a incipiente participação das organizações de pacientes nos órgãos técnico- científicos e tomadores de decisão demonstram a falta de representatividade das pessoas com doenças raras no processo político da ATS.

No cenário brasileiro, portanto, os pacientes com doenças raras devem continuar litigando judicialmente para a distribuição equânime dos recursos de saúde. Esclarecemos aqui que isso não se refere ao fenômeno denominado "ativismo judicial", mas, na verdade, ao exercício da função contra-majoritária da Suprema Corte brasileira.

Obstáculos políticos para a inovação social farmacêutica como o apontado aqui são objeto de estudo do nosso projeto SPIN, que produzirá recomendações para aprimoramento dos regulamentos nacionais de ATS em prol do fortalecimento positivo e equânime de sistemas de saúde, especialmente de países em desenvolvimento, como o Brasil.


Referências

Aith, F., Bujdoso, Y., do Nascimento, P. R.; Dallari, S. G. (2014). The principles of universality

and integrality of the Brazilian National Public Health System from the perspective of the policy for rare diseases and the incorporation of technological resources. Revista de Direito

Sanitário, 15(1), 10-39.

Cordovil-Oliveira, Cláudio (2021). Falta de independência da Conitec é apontada na CPI da Covid. Academia de pacientes, Rio de Janeiro.

Jonsson, E.; Banta, D. (1999). Management of health technologies: an international view.

BMJ, 319(7220), 1293.

Souza, M. V. D., Krug, B. C., Picon, P. D.; Schwartz, I. V. D. (2010). High cost drugs for rare diseases in Brazil: the case of lysosomal storage disorders. Ciência & Saúde Coletiva, 15, 3443- 3454.

World Health Organization. (2011). Health technology assessment of medical devices.

Yuba, T. Y., Novaes, H. M. D., & de Soárez, P. C. (2018). Challenges to decision-making processes in the national HTA agency in Brazil: operational procedures, evidence use and recommendations. Health Research Policy and Systems, 16(1), 1-9.

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